Eram 1:45 da manhã e ele ainda estava acordado. Não havia ainda compreendido o porquê de estar tão desperto, já que levantou-se muito cedo e o dia tinha sido um tédio. Tedioso como todos os demais dias da sua vida, desde quando entrou na prisão. Pairava no ar um silêncio de morte.
Na sua mente, repassava todos os últimos acontecimentos e desesperava-se por encontrar uma saída: mais cedo ou mais tarde, viriam acertar as contas. Num sobressalto, seus pensamentos foram dissolvidos por um barulho estralado, que vinha do corredor. O ruído não era alto, mas naquele instante, em que podia ouvir até as batidas do seu coração, fazia-se perfeitamente audível. Parecia que alguém estava rasgando alguma coisa.
Com seu espelho na mão (presente de uma puta, que conheceu nas visitas semanais), pôs o braço um pouco para fora da cela e viu o que não queria: dois homens traziam para fora da cela um rapazola assustado, com um pedaço de toalha enfiado à força goela abaixo, amarrarando-lhes em seguida os pés com as mãos, às costas, de forma que ficasse completamente indefeso.
Já não era novidade ver alguém abrindo as grades de seus quartos à noite, cujas chaves eram feitas com pedaços de isqueiro e alfinetes, que conseguiam não se sabe como. Tudo se improvisava na prisão, até mesmo a morte.
Não sabia o que o rapaz tinha feito, mas parecia ser daqueles novatos que desconhecem as regras do Crime: não viu nada, não ouviu nada e não sabe de nada, aconteça o que acontecer. De onde estava, a poucos metros da cena, pôde ver que um dos algozes era um mulato forte, que tinha apanhado dos guardas uns dias antes e teve que ser medicado no Ambulatório.
“Medicado”… o que faziam lá talvez fosse pior do que ficar em um canto quieto, esperando que as feridas do corpo sarassem. As da alma, que nunca cicatrizavam, seriam suas razões e motivos no dia em que se vingaria do sistema, contagem essa que teve início quando caiu pela primeira vez, junto com outros comparsas que tinha acabado de conhecer. Jurava que fossem seus amigos naquele dia em que o levaram na zona para um “batismo” e, quando acordou, estava amarrado a um pau-de-arara confessando coisas que jamais imaginaria fazer com alguém.
É… anos de xadrez e agora ele era mais um número naquele covil, sem qualquer esperança de voltar vivo para casa, embora tivesse a contar muitas histórias e estórias ouvidas na prisão, das pessoas que conheceu e de outras que, por sua fama de crueldade, faziam-se parecer heróis às avessas, justiceiros injustiçados, sem raízes em qualquer lugar, como se tivessem vindo diretamente do inferno.
Tudo isso passava em sua mente enquanto assistia o rapazola assustado, que estava agitadíssimo, mas impotente para impedir que seus carrascos o arrastassem. Deram-lhe uns murros, cuja dor se manifestava em berros abafados pelo pedaço de toalha que haviam introduzido em sua garganta. Parece que funcionou porque o homem, se não estava desmaiado, fingia estar, na frágil esperança de que assim procedendo talvez cessassem seu suplício.
Viu ainda pelo espelho – já nem tinha noção de há quanto tempo assistia aquele espetáculo de horror – que um fim trágico não tardaria àquele rapaz, pelos métodos que estavam usando: com um fio elétrico resistente, passaram algumas voltas em seu pescoço e o traziam para o parapeito no corredor. Lá embaixo, estava o pátio de onde viam o sol uma hora por dia.
Amarrando a outra extremidade do fio à coluna de concreto do corredor, desfizeram os nós que atavam suas mãos e pés. Viu-se que o desmaiado despertara na pior hora daquele pesadelo: o seu desfecho. Lançaram-no ao nada, e só se pôde ouvir o estalo do fio, que havia se arrebentado, e o baque seco do corpo no chão, inerte ante a gravidade do choque. A simulação de suicídio havia falhado, mas o final que se buscava com o castigo, não.
As traições eram resolvidas com o enforcamento, mas o vôo da morte naquela madrugada precisaria de um pretexto, digamos, mais forte. Não estava previsto no roteiro o rompimento do fio, e o som de um corpo estatelando-se no concreto era por demais familiar para que os guardas não se importassem. Afinal, barulho e berros na madrugada eram muito comuns, mas não cabia a eles interferir nos negócios acertados na escuridão da noite, pelo próprio regulamento interno e secreto que vigorava na prisão; poderia até ser que alguém estava currando algum novato, e isso era para eles normal. Instinto.
De pronto, percebeu-se então uma luz acender lá embaixo e notou que os dois vultos daquele corredor vinham em direção à sua cela. Apavorado, deixou cair o espelho, fazendo barulho, o que reacendeu a ira daqueles assassinos. Para eles, era preciso agir rápido e, com a destreza de quem já havia feito aquilo centenas de vezes, abriram o cadeado em segundos. Não havia necessidade de mordaças, pois a vítima estava imóvel e muda de terror, como um animal em sacrifício.
Lançando mão do pedaço de fio elétrico que ainda estava amarrado à coluna, deram-lhe duas voltas apertadas no pescoço e o jogaram no mesmo lugar do outro, ouvindo-se um segundo corpo quedar ao chão.
Passos no corredor. O carcereiro também acordara e vinha acompanhado de mais homens, e logo chegariam ao segundo andar, o palco daquela noite. Os vultos recolheram-se rapidamente à cela e em silêncio cerraram o portão de ferro, no mesmo instante em que os donos daqueles passos já faziam sua sombra naquele pavilhão. O silêncio era aquele mesmo silêncio de morte de antes, como se não estivessem mais ali aqueles assassinos e tudo tivesse sido causado por fantasmas criados no imaginário daqueles homens, quando em momentos de absoluta solidão. Um dos guardas aproxima-se do parapeito e olha lá embaixo, onde o colega já ilumina com a lanterna os corpos amontoados um sobre o outro.
No pavilhão, tudo é silêncio e não é aconselhável, para sua própria segurança, despertar aqueles homens no meio da noite para arrancar explicações. O horário de sono é sagrado na prisão, porque oportuniza que façam dos sonhos o passaporte para uma experiência longe das grades, antes que acordem na rotina da realidade.
* * *
No outro dia, logo cedo, o relatório do plantão noturno chega às mãos do Diretor do Presídio. Rotina de praxe, ele assina sem ler e em seguida guarda na pasta do arquivo. O veredicto ali deduzido era o estranho suicídio de um casal, ou seja, mais um desses casos bizarros de paixão prisional que não raro resultam em morte.
Os corpos foram levados ao IML, onde os peritos atestaram a versão do Diretor, sem maiores cuidados. Retiraram o fio elétrico dos pescoços daqueles cadáveres e em seguida liberaram os corpos para o sepultamento. Vala comum; nenhum teve visita de parentes nos últimos 12 anos.
Apenas uma curiosidade intrigava o coveiro, que conhecia a história de todos aqueles que enterrara em anos de profissão: aquele pano na boca ainda estava lá, como um trapo, sem qualquer relação aparente ao suposto caso entre os dois.
Com dois últimos movimentos, acabou de cobrir a cova e selou com terra a existência daqueles homens para sempre. A toalha? Ora, quem se importa? Afinal de contas, só o amor liberta.
Cuiabá (MT), 27 de junho de 2001, às 11:30 horas.