Naquele bairro sujo moravam, na mesma rua, as crianças Deodato, João Cirilo, Caetano e Marisa. Todas de pé no chão, nariz escorrendo, uma nojeira.
Mas eram felizes porque, embora já tinham idade para saber das dificuldades financeiras pelas quais passavam suas famílias, isso nunca foi motivo de violência doméstica, ou alcoolismo; e depois, elas próprias nunca brigavam, passando assim a deliciosa fase da infância.
Deodato era o mais novo deles e, por causa de seu corpinho raquítico, tinha o apelido de “Chassis de Frango”. João Cirilo e Caetano aprontavam todas, e a culpa naquelas traquinagens em que não se descobriam os autores era de pronto atribuídas a eles, graças aos diligentes comentários das vizinhas fofoqueiras de plantão.
Marisinha, coitada, como não tinha amigas, andava com os moleques e participava de igual para igual em todas as brincadeiras, como se menino fosse. Não raro se machucava feio, e depois da dor de seus ralados e tombos ainda ganhava mais uma surra quando voltava pra casa.
Mesmo assim eram felizes porque, naquela idade, todos por volta de seus 8 ou 9 anos, ainda tinham o privilégio de cair da árvore, levar tombo de bicicleta e se sujar na lama das chuvas, ao invés de ficarem “sãos e salvos” dentro de casa e na frente de uma televisão o dia inteiro, como faziam as crianças do outro lado da cidade.
Há algum tempo, houve a época das bolinhas de gude; depois vieram os “acampamentos” feitos com sacos de estopa, dali a pouco vinha qualquer outra mania… mas a moda agora era contar vantagem: um falava que lutava caratê, outro falava que andava armado (tudo bem que era apenas uma caneta Bic sem a carga, onde uma das pontas ostentava uma lâmina de apontador de lápis, mas não importa), o outro dizia que seu pai era polícia… enfim, todos eram um verdadeiro perigo ambulante.
Deodato “Chassis de Frango”, coitado, não conseguia arrumar um motivo forte o bastante para incutir medo na gurizada. Como era o mais fraquinho, vivia sendo humilhado nas brincadeiras: ora não corria o suficiente, ora não tinha a força necessária, mas o que sempre o deixava pra trás mesmo era o fato de ter um problema neurológico – era mentalmente debilitado, não batia bem da cabeça.
As vizinhas comentavam que ele tinha um ar meio bobo, é verdade… mas seus pais faziam de tudo para encobrir seu problema e seus remédios controlados, pegos no postinho de saúde de outro bairro. Sabe como é a saúde no Brasil… às vezes a medicação atrasava, e isso geralmente refletia no seu comportamento, fazendo com que agisse impulsivamente e sem medir conseqüências. Da última vez que os remédios faltaram, ele tinha ateado fogo na casinha do cachorro pra brincar de bombeiro. O incêndio até que ficou legal, o pânico da “vítima” também, a água para apagá-lo era mais que suficiente, mas o cachorro… coitado.
Num belo dia, já pelas dez horas da manhã, a molecada estava toda reunida no campinho de terra, onde costumavam jogar bola; porém, o objetivo daquela reunião era comparar entre eles o “violento potencial lesivo” de suas respectivas famílias, entre autoafirmações de força e coragem. A Marisinha estava toda metida, dizendo que seu pai “polícia” tinha matado 8 bandidos na noite anterior, não sem antes fazê-los ajoelhar no grão de milho (ou seja, homicídio qualificado pelos “requintes de crueldade”).
Já Caetano contava de boca cheia que “pegou” um grandão invocado lá da rua de cima e “riscou ele na faca”, tendo seu desafeto ido parar no hospital. Pelo que tinha sabido, ele ia ficar lá “pra sempre”. João Cirilo, que era “faixa preta” no caratê (embora ninguém soubesse o porquê dele sempre ter escondido essa sua, digamos… identidade secreta), alardeava que fora chamado para participar de uma espécie de vale-tudo infantil nos Estados Unidos, com tudo pago (inclusive com uma passadinha na Disneylândia, porque ele tinha feito uma “exigência de artista”: queria ver o Pateta e o Mickey). Até aí, nada do Deodato, a quem não viam desde a tarde de véspera, aparecer pra contar sua “história”.
João Cirilo, como era o mais forte da turma, foi o que conseguira meter mais medo em relação às realizações dos demais. Na verdade, nunca teriam notícias sobre o policial herói que com apenas 6 balas matara 8 bandidos ajoelhados sobre grãos de milho, assim como jamais seria conhecido o “grandão invocado da rua de cima”, por causa de sua internação perpétua. Já o negócio do Caetano era no futuro e ninguém podia contestar. Mas com o João Cirilo era diferente, ele tinha “provas”: vivia dando umas demonstrações de golpes por aí, socando e chutando o ar com a maior seriedade deste mundo, sempre impondo temor e respeito (senão pela técnica, com certeza pelas poses). Tudo bem que não fazia mais do que imitações baratas de filmes da Sessão da Tarde, mas ninguém precisava saber disso, até porque na época ele era o único que tinha televisão em casa.
Estavam discutindo suas valentias há algum tempo quando eis que surge, a meia quadra dali mas correndo na direção deles, uma espécie de “Rambo ninja”, enrolado num lençol laranja puído (provavelmente dos pais), com um largo cinto de couro na cintura, bem maior que si (provavelmente do pai) e outro vermelho (provavelmente da mãe), com rebites cromados e enrolado como uma faixa na altura da testa. Na cintura, ainda carregava um estilingue, uma velha faca de mesa serrilhada, uma latinha achatada contendo talco (era sua “bomba de fumaça” ninja) e uma corda fina de plástico (provavelmente do varal), itens mais que obrigatórios em qualquer bat-cinto.
Enroladas nos pulsos, tiras de couro meio queimadas (provavelmente o que sobrou da coleira do cachorro) e, na mão esquerda, uma tampa de lixo com alça, feita de metal (provavelmente um escudo), enquanto que a direita segurava um cabo de vassoura (provavelmente um bastão). Além disso, ainda trazia nas costas uma espada de plástico do He-Man (provavelmente achada no lixo), amarrada com um araminho mole. Da cara toda pintada de um troço preto, parecendo graxa, saltavam seus olhos injetados de ódio, e a bocarra, amedrontadoramente aberta, dizia os maiores impropérios já ouvidos naquelas vizinhanças.
O moleque estava possuído: gritava e brandia o pedaço de vassoura enquanto vinha em disparada, mostrando uma inegável disposição de dizimar a todos só para marcar com um banho de sangue e para todo o sempre a lenda de sua existência.
Ao ver aquilo vindo em sua direção, a gurizada, depois uns 3 segundos de bobeira paralisante, debandou geral em desespero, uns chamando pela mãe, outros subindo em árvore e no que vissem pela frente. Os vizinhos apareceram para acudir e até o Seu Batista, acomodado dono do boteco da esquina, veio ver o que era aquele pandemônio. Era criança chorando, gente rezando, cachorro latindo… virou um escarcéu.
Ninguém sabia, mas Deodato não tomava remédio há uma semana. Já o coisa, deleitando-se com aquele cenário de guerra que tinha armado na rua, viu-se finalmente orgulhoso de ter vingado todo o desprezo e zombaria sofridos na vida.
Já não tinha policial herói, marginal corajoso ou carateca campeão que estivesse à sua altura, porque todos o temeriam a partir de agora. Como não conseguiu acertar bordoadas em ninguém (até porque qualquer um corria mais rápido que ele), só sossegou mesmo quando a mãe apareceu, aflita, as mãos em prece. Ela, sim, era a própria figura de um sábio e honorável mestre, digno de todo o seu respeito e honra, porque além de não dar-lhe uma surra, ainda cuidou de abafar o caso, nada deixando chegar ao ouvido do pai. Enfim, coisas que só um verdadeiro espírito iluminado faria.
Passado aquele susto, dali a poucos dias mudaram-se para outra cidade e nunca mais se teve notícias deles. Aquelas “perigosíssimas” crianças cresceram e também foram embora, e novos vizinhos mudaram-se para lá. Porém, aquele episódio marcou data e, até hoje, quando a gurizada na rua começa a querer brincar de valentes de novo, todo mundo se lembra do Deodato “Chassis de Frango”, e os mais velhos ainda comentam à meia-boca: perigoso mesmo é o tarja preta.
Cuiabá/MT, 19 de fevereiro de 2003.